O Jogo da Neve: quando o Inter-SM enfrentou o Juventude sob um tapete branco em Caxias
Na noite de 17 de julho de 1975, o Internacional de Santa Maria viveu um dos capítulos mais curiosos e extraordinários de sua trajetória. Foi nesta data que o clube enfrentou o Juventude, em Caxias do Sul, sob uma intensa nevasca que cobriu o gramado do estádio Alfredo Jaconi, em um dos poucos jogos de futebol já registrados sob neve no Brasil. Essa partida inusitada, quase folclórica, é contada com riqueza de detalhes no livro “Pé-Frio: Futebol e Neve no Brasil”, do jornalista Henrique Porto. Diversos trechos a seguir foram extraídos diretamente dessa obra que resgata com sensibilidade e precisão histórica os bastidores desse dia congelante e memorável.
A tarde começou como um típico dia de inverno na Serra Gaúcha, até que algo raro começou a se formar no céu. “Escureceu mais cedo em Caxias do Sul naquela tarde de julho”, relata o autor. Por volta das 18h30, após ameaçar durante todo o dia, a neve finalmente caiu — e caiu de forma abundante, como poucas vezes se viu na região.
“Proporcionou um espetáculo único (…), marcando presença numa quantidade nunca antes vista por aquelas bandas e levando o povo às ruas em êxtase.”
Enquanto a cidade vivia o que ficou conhecido como o Carnaval da Neve, com caxienses construindo bonecos e travando batalhas de bolas na Praça Ruy Barbosa, dois clubes se preparavam para enfrentar o desafio de jogar sob um gramado coberto por neve. O Juventude, que usava o amistoso como preparação para a Taça Governador do Estado, e o Inter-SM, que vinha embalado por uma campanha consistente na primeira fase do Gauchão, decidiram entrar em campo apesar das condições extremas.
“Com o frio intenso, até se cogitou o cancelamento do encontro, porém os atletas colorados queriam fazer valer a viagem de quase 300 quilômetros e insistiram para que a bola rolasse.”
A decisão foi corajosa, e histórica: foi, de fato, o primeiro jogo de futebol disputado sob neve no Brasil.
A temperatura no momento do apito inicial era de dois graus abaixo de zero, e o campo estava tomado por cinco centímetros de neve, o que transformou o tradicional “tapete verde” em um branco alvíssimo. O árbitro Homero Rasbold afirmou que não houve problemas para a realização do jogo, e que só o cancelaria se as linhas do campo não fossem visíveis — algo que a própria neve tratou de resolver: “o efeito da neve deixou elas pretas”, explicou.
Para tentar minimizar o desconforto do frio, os dirigentes do Juventude ofereceram graspa, uma aguardente italiana, aos jogadores e ao trio de arbitragem. Rasbold recusou, mas liberou seus auxiliares: “só pedi para que não exagerassem”, lembrou aos risos.
Mesmo com a expectativa de arquibancadas vazias, a diretoria do Juventude liberou a entrada, solicitando apenas uma contribuição espontânea. A ação surpreendeu: foram arrecadados Cr$ 1.440,00 — valor que provocou ironias da imprensa local:
“Se o Juventude cobra ingresso para aquele jogo, provavelmente a renda não chegaria a mil cruzeiros”, corneteou o Jornal de Caxias.
Entre os torcedores corajosos que enfrentaram o frio, estavam os irmãos Ediberto e Giana Rossarola Chukst, que representavam gerações de torcedores apaixonados pelo Juventude. “Fomos devidamente equipados com jornais velhos para forrar a gelada arquibancada, além de almofadas, japones, gorros, luvas e mantas”, recorda Ediberto. Muitos preferiram o conforto da arquibancada coberta, e boa parte foi embora ainda no intervalo, vencidos pelo frio.
O campo transformado em lama escorregadia, a bola difícil de controlar e o vento constante tornaram o jogo tecnicamente limitado. Os próprios jornais da época reconheceram as dificuldades:
“O espetáculo, como futebol, não agradou. Os jogadores escorregavam e patinavam muito. Afinal, nenhum tinha experiência em campo com neve”, escreveu o Correio do Povo.
“A partida não foi muito boa. Nem poderia ser. O gramado (?) não tinha condições ideais”, complementou O Pioneiro.
Mesmo assim, o Juventude venceu por 2 a 0, com gols de Assis e Da Silva. O Inter-SM entrou em campo com: Júlio Cioccari; Tadeu, Adilson Diniz, Donga e Mariano; Paulinho, Edson e Valdo; Maurinho, Rudinei e Marcos. O meia Valdo, aliás, foi um dos destaques do jogo e chamou a atenção do técnico Procópio Cardoso Neto, do Cruzeiro-MG, que estava nas arquibancadas e acabou contratando o jogador para a temporada seguinte.
“Mesmo com todas as dificuldades técnicas, a atuação do meia Euriovaldo Teixeira, o Valdo, encheu os olhos do técnico Procópio.”
Para o árbitro Rasbold, a resistência dos jogadores era visível: “Eles pediram para que eu terminasse antes dos 45 minutos, mas eu falei que não podia”. Já os poucos torcedores presentes se divertiam com os escorregões, os tombos e até jogavam bolas de neve nos brigadianos responsáveis pelo policiamento.
“O que valeu mesmo foi a grandiosidade do espetáculo — um jogo desenvolvido embaixo de neve, que paradoxalmente foi disputado num ritmo quente.”
Esse jogo entrou para a história — e para o folclore do futebol brasileiro. E o Inter-SM esteve lá, firme, diante da neve, do frio e da raridade do momento, honrando sua camisa e participando de um dos episódios mais marcantes do esporte nacional.




